Algumas garantias, se não são revisadas depois de um tempo, adquirem o status de privilégios – e se tornam até mesmo verdadeiras excrecências. É por isso que a lei precisa sempre atualizar-se. Quando isso não ocorre, há uma dissintonia entre as normas, as instituições e a sociedade. É caso do foro por prerrogativa de função, que se convencionou chamar de foro privilegiado. Trata-se de um postulado que tem o propósito de resguardar determinadas funções públicas de qualquer espécie de constrangimento, inclusive judicial. Mas esse sentido, aparentemente meritório, foi se desvirtuando.

Tal reserva legal se transformou num biombo atrás do qual os poderosos têm julgamentos por cortes exclusivas, diferente do cidadão comum. Ninguém mais entende e tolera esse tipo de diferença. Na verdade, até poderia caber em um Brasil de outra época. Hoje não faz mais qualquer sentido, seja porque as garantias constitucionais e democráticas já estão solidificadas, seja porque há um forte clamor social pelo fim de zonas de sombra como essa. A população pede mais transparência e igualdade de tratamento.

O Congresso Nacional, por muito tempo, titubeou a respeito do assunto. Tal imobilidade, somada à pressão popular, fez a questão chegar ao STF (Supremo Tribunal Federal). A rigor, não é a situação perfeita. O parlamento é que deveria posicionar-se a respeito – inclusive com proposta modificativa da parte da Constituição Federal que trata desse tema. Mas, diante da omissão, é meritório que a principal corte do país tenha assumido para si o papel de solidificar uma interpretação mais restritiva sobre esse suposto direito.

A tese que teve aceitação majoritária dos ministros do Supremo é a de que a prerrogativa de foro só é válida para atos cometidos no exercício do mandato, e especificamente em relação às suas funções. Estudos mostram que essa decisão atingiria apenas deputados federais e senadores, o que representa pouco mais de 1% entre todas as pessoas com direito a processo em instâncias superiores. O país tem quase 55 mil cargos públicos com tal garantia, enquanto os parlamentares federais não chegam a 600. De qualquer modo, não se pode deixar de reconhecer que é um avanço.

O Congresso Nacional, com atraso, agora também está debatendo o assunto. A matéria aguarda apenas que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, assine o ato de criação da comissão especial que vai discutir o mérito da PEC que veio do Senado. Se isso ocorrer, a proposta pode ir ao plenário ainda no primeiro semestre do próximo ano. Há, no entanto, tentativas de proteger ex-presidentes, alargando o alcance do foro em relação a eles. Isso seria um gigantesco equívoco, ainda mais depois de todos os escândalos que têm envolvido os meandros do Palácio do Planalto. É preciso acompanhar com atenção. Se houver descuido, a emenda pode ficar pior que o soneto.

O fim do foro privilegiado é, acima de tudo, um símbolo. A população que protestou nas ruas, se mostrando carente de representatividade, quer que ao menos esse privilégio seja derrubado. Não para prejudicar alguém especificamente, mas para cultivar aquela velha aspiração de que todos são iguais perante a lei. Então, que os homens públicos sejam mais probos. Que as leis tenham mais sintonia com a realidade. Que se diminua a impunidade. Que os processos andem mais depressa. E, por fim, que os brasileiros possam voltar a ter um pouco de esperança.